Temer sempre foi um político ruim de votos e é claro que isso quer dizer muita coisa numa democracia. Coisas ruins, em geral. Fez a carreira política beneficiado pela presença em aparelhos que lhe garantiam a eleição em pleitos parlamentares, invisível e opaco num máquina de cabos eleitorais profissionais, prefeitos, governadores e empresários amigos que garantiam votos anônimos, inexpressivos e difíceis que são assegurados hoje para serem esquecidos amanhã. Tudo aquilo que a maioria da população rejeita e condena.
Cresceu na fase sem glória e sem moral do velho PMDB que foi a legenda honrada de Ulysses Guimarães e da luta contra a ditadura. Ganhou importância quando gerenciava – o termo é este – uma força sem importância para o povo, apenas para os interesses de uma maioria arrasadora de amebas profissionais.
Protegido pela opacidade de quem nunca sentiu necessidade de revelar uma ideia, um projeto, Michel Temer se desfaz dia após dias, há dois meses, desde que, sob os holofotes da presidência, precisa dizer a que veio e enfrentar a hora da verdade. Nessa circunstância inevitável, exibe um programa de anti-Brasil. A essência do seu problema é política.
Ele chegou ao Planalto a bordo de um golpe parlamentar, uma suspensão temporária do Estado Democrático de Direito, destinada a permitir a aplicação de medidas de exceção de caráter cirúrgico, que devem ser limitadas no tempo e na profundidade, pois não há condições políticas para ir além disso.
Desde o primeiro dia, contudo, o governo Temer busca mudanças de outro caráter, que mesmo governadores eleitos, em disputas legítimas e inquestionáveis, teriam dificuldade de realizar. Em países com o perfil sócio-econômico semelhante ao nosso, é mais frequente em ditaduras escancaradas – e não nas envergonhadas.
Ainda que tenham sido inspirados em Margaret Thatcher e Ronald Reagan, as versões sul-americanas mais conhecidas de criação de um Estado mínimo exibidas pelo governo Temer só conseguiram avançar em suas pretensões através da ditadura, da tortura e da violência, da supressão das garantias democráticas. Você sabe de quem estamos falando: Augusto Pinochet, que destruiu no Chile o mais avançado estado de bem-estar social do continente; e Alberto Fujimori, que arrancou a raiz das primeiras iniciativas que vinham sendo construídas nessa direção. Pinochet chegou a La Moneda pelo sangue de um golpe que se tornou uma vergonha mundial desde o primeiro dia -- como tantos exilados brasileiros conheceram na própria carne. Fujimori foi eleito e, após uma série de movimentos demagógicos, cavou terreno para um golpe institucional, origem de uma ditadura corrupta e violenta que seria derrubada com auxílio da Casa Branca, com receio de que o caráter temerário de seu governo levasse a uma situação fora de controle, ameaçando a estabilidade conveniente aos investimentos no país. Nos momentos de megalomania, seus aliados falavam que a "fujimorização" poderia ser uma entendia na América Latina.
Pinochet foi ditador por 17 anos. Fujimori, tudo somado, ficou dez.
Antes disso, porém, ambos tiveram direito a pequenos minutos de glória, permitida a partir de princípios mais flexíveis do que se imagina por parte de quem tinha o dever de negar apoio e consideração. Pinochet foi tratado por Tatcher com honras de aliado preferencial, protegido inclusive no momento em que, deposto, teve de encarar um mandato de prisão por tortura e morte assassinado pelo procurador espanhol Baltazar Garzón.
Ainda em seu posto, Fujimori estufou o peito, em Lima, na cerimônia em que Fernando Henrique Cardoso lhe entregou a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração do Estado brasileiro.
A impopularidade de Temer é recorde pelo prazo mas sua origem é o conteúdo. Trata-se de um programa que jamais teria votos da maioria dos brasileiros para chegar ao Planalto. De caráter socialmente excludente, colonial em sua essência, a rejeição era só uma questão de tempo.
Por mais que a mídia grande tenha feito o possível para esconder a natureza perversa do processo em curso, numa manipulação de informações coerente com um processo que o Prêmio Nobel da Paz Perez Esquivel chamou de golpe branco, a população já compreendeu o sentido do espetáculo. Diariamente, descaradamente, seus benefícios são reduzidos. Conquistas de tempos recentes recentes são ameaçadas – quando não foram suspensas de imediato. Não há nenhuma boa notícia para quem é pobre, dá duro no fim do mês para pagar contas e educar os filhos. A lista é tão longa que o risco de esquecer alguma coisa é real.
O projeto que limita o endividamento do governo é um programa de recessão permanente. A reforma na Previdência é uma ofensa. A mudança no Minha Casa Minha Vida é um escárnio. A base para cortes no Bolsa Família é uma mentira. O ataque a Petrobras é um crime. O retrocesso na educação é um recuo histórico. O programa de destruição da CLT envergonha qualquer cidadão com orgulho do 13 de maio de 1888.
Nos terroristas de Alexandre Moraes, na suspensão do Whatsapp, no projeto de suspensão de garantias democráticas do Ministério Público, medidas autoritárias ameaçam chegar a vida real. O nome adequado para o financiamento politicamente dirigido a portais da internet é aparelhamento.
Nefasto por sua própria natureza, o golpe de abril-maio é um desses desafios imensos que o povo de um país está condenado a vencer, de uma forma ou de outra. Se a história conta uma lição é ensinar que cedo ou tarde a maioria consegue impor seus direitos, por mais obstáculos que encontre no caminho.
No Brasil de 2016, a opção mais civilizada e menos traumática também é a mais curta, obviamente. Reside na votação do Senado, que pode transformar o pesadelo dos últimos dois meses num episódio grave mas passageiro. Bastam os votos necessários para derrotar o golpe, abrindo caminho para um plebiscito que poderá realizar aquilo que a quase totalidade da população deseja -- a realização de novas eleições presidenciais. Para além de tramas menores de balcão, disponíveis em qualquer lado, a base dessa decisão será a convicção, por parte de um número razoável de senadores, de que é impossível ignorar que mesmo direitos e prerrogativas de representantes do voto popular estão em jogo num processo que abre caminho a medidas de exceção que ninguém sabe aonde vão terminar.
A hipótese de uma derrota da democracia no Senado é lamentável, deve-se admitir. Seu efeito seria transformar a resistência num processo mais duro e doloroso, ainda que inevitável. Mas, ao contrário do que dizia a filosofia amiga de Pinochet e Fujimori, não há fim da história. Ela sempre pertence ao povo que, nas pesquisas sem truque, já disse com clareza o que pensa de Michel Temer e seu governo.
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